quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Contim

"A vida é curta pra ser pequena" - é mote conhecido e obviamente respeitado  do mestre Chacal, meu mestre e amigo, também de tricolores Sofrências, como a desse inacreditável final de campeonato brasileiro de futebol - sunset 2013 - , com suas inesperadas rodadas  juristribúnicas e descalibrinos desfechos, ainda não consumados. 
Chamei pro muro esta frase pra destrinchar  que até mesmo as menores coisículas de inesperado aparício podem conter, senão lições, rodagem que se vai guardando e que se usa entroncamentos à frente prum fim teoricamente bão, a tal "experiência de vida" rezada pelas cartilhas. É o caso que puxo agora pro picadeiro, e acontecido com um amigo de muita andança nos sertões da música.
Arley chamava as canelas na volta à casa em Santa Teresa empós  ensaio ali na parte véia da cidade, as quebradas da rua do Senado, onde nos arrabaldes inda se comem nos butiquins os  bons pê-efes de antanhos que remontam às giras da tia Ciata, põe bons cem anos aí. Voltava com o violão na cacunda e o pensamento  naquele automático que a gente costuma ligar quando na ura pra chegar logo ao cafofo. A via era a avenida Chile, que se atravessa na direção dos pontos de ônibus que sobem Santa Teresa a partir ali da Treze de Maio. 
Pois bom, exatamente embaixo do viaduto que em cima é a avenida república do Paraguai passava o Arley quando uma voz manduca "ô cara esse violão aí", e o cara - ele o Arley - depois daqueles segundos de susto onde se pensa "perdicaralhoéassalto" procura ver daronde que tava o tal dono da voz, se epifania não fosse - há sempre esse ponto e vírgula quando se anda no centro véi do Rio nas madrugadas - e viu que o dono da voz era um candango sentado ali junto ao murão de concreto já bem usado pelos mijões de sempre. Mistura de Tiradentes de cartilhinha e passaralhos hipongas naquela barba bem Crística de tão enorme, um tipo aliás bem comum de se encontrar em qualquer ponto dessa cidade Partida, o cara fala pro Arley "né assalto não, que aliás nem se eu quizesse, as forças já num respondem como deviam", e num sorriso mei torto completa "cê toca violão né, pois eu também, pô deixa eu dar uma palhinha aí, faz tempo que não pego num instrumento".
Arley não era e nem é o tipo do sujeito leviano, mas a cena era decididamente um prelúdio de que algum viés interessante relumiria ali de tão inesperada  cartola. Ignorando o clima - e o fartum - daquele público mictório chegou pra junto daquela figura profética, verdadeiro Geraldão Viramundo saltado das profunduras do Fernando Sabino ali naquele início de madrugada. Ainda num bem compreensível ressabiê desencapou a viola - um giannini do bom(tenho um igual),  feito em maciço pau-ferro com escala de jacarandá - e o deu na mão do cara. "Senta aí irmão, eu num mordo não", tartamunhou a entidade, e o Arley na réplica "tá tranquilo parceiro, manda aí", no que foi prontamente atendido.
O cara fez um mi maior - maneira bem prática de  ver se um violão está afinado mesmo, e mandou:  nada menos que o Prelúdio nº 1 em mi menor de Heitor Villa-Lobos, e  para os leigos aviso: o nosso Villa  está para o violão exatamente como Chopin está para o estudo do piano. Já nos primeiros compassos o queixo do meu amigo se escafedeu gritando, e deve ter chegado sozinho lá em Santa Teresa, subindo as ruas literalmente com os dentes - o cara era FODA, monstruoso, piramidal, genialíssimo  na interpretação de peça que exige meses de estudo pra ficar "tocável", e além de tudo com uma sensibilidade maiúscula, de ser aprovado com vênias máximas em qualquer consurso pra professor de qualquer curso superior de violão. 
Nesse cantê  narrativo o Arley  já tava sentado do lado dele - esquecera o cheiro o mijo o diabo - e num crescente barrundó de espanto assistia ao que pra ele era já a melhor das epifanias  - foram pelo menos mais sete peças, todas constando em  portfólios de qualquer concertista que se chame Decente, e prefiro a omissão dos nomes e de seus compositores em respeitança ao leitor não - músico, com  exceção  de um: o cara finalizou com nada menos que o primeiro movimento do Concierto de Aranjuez, do espanhol Joaquim Rodrigo, simplesmente uma das mais caningadas "peças de resistência"- como diriam os franceses - de todo o repertório erudito do violão. 
De empós então o viramundo devolve(o violão) ao meu amigo, e visivelmente emocionado diz "valeu de Muito, mermão, eu tava precisando". E como se não houvesse feito nada de mais entrou num puxavanço de assunto com ele  - onde e com quem estudava, se  dava aulas, se tinha violão feito por "luthier" e por aí vai. O meu amigo o interrompe:" pô cara olha só, depois do que você fez o mínimo que eu espero é que você me responda umas perguntas, essa aqui pelo menos: COMO que um cara com o seu talento está aqui desse jeito, dormindo na rua no paredão da avenida Chile???? Não quero me meter na tua vida, mas convenhamos que é uma pergunta razoável, né? Inda mais numa hora dessas?"
O concertista improvável não se fez de rogado. Mas meteu a mão num dos lados do corpo, e surgiu uma garrafinha de água mineral  dessas de camelô - mas o líquido que estava dentro era meio escuro. Destampada que foi, o cara mandou pra dentro um golaço, limpou a boca com as costas da mão e ofereceu "manda aí, é uisquinho, cortesia de um turista bêbado que trocava as pernas por  aqui ontem ". Arley provou - ERA uísque mesmo, e do bom. Ele então começou: "cara o meu lance é bem comum na verdade, história que não interessa ninguém. Minha família nem é pobre, embora não seja rica, eu não sou daqui sou de Bom Jardim, mas vim pra cá uns vinte anos atrás pra estudar violão no Conservatório Brasileiro de Música. Eu tinha uns alunos aqui no centro mesmo,  morava aí nas quebradas da Cruz Vermelha. Tinha uma vida normal como todo mundo, saía no bloco das piranhas todo carnaval, enfim, é isso aí. Me formei, dei recital, um dos professores falou de mim prum colega, queriam me levar pra Alemanha, fazer doutorado, me especializar, essas merdas. Não fui porra nenhuma. O caso, mermão, é que eu tinha uma mina lá em Bom Jardim, uma fulana também musicista, professora. Linda, mermão, mas linda de doer. A gente tinha um lance, saca, namoro antigo,  compromisso. Falei com ela sobre a Alemanha, ela num quis nem ir comigo e muito menos que eu fosse. Fiquei, casamos, eu dava aula ela também, a coisa deu Curumim, um molecão taludo, cara, lindório mermo. 
Mas aí mermão, quando o moleque fez cinco anos foi que tudo fudeu. ' filhadaputa me traiu, xará, me traiu com um colega professor, um arrombado. Mermão eram quinze anos de lance, fora os trocados, a gente era grudado mermo, saca. E fudeu tudo, ela destrumpeteu se mandou, eu fiquei Muito na merda. Daí foi que parei com tudo, larguei com tudo. Larguei o guri com o meu pai, meti a cara no mundo, descaralhei. Isso tem tempo já. tem tempo..." e o cara parou de falar, assim num  cós-momentó. Ficou olhando os pés - tão imundos quanto o restante dele, e pareceu mesmo esquecer que meu amigo estava ali ao lado. E não abriu mais a boca. Arley olhou bem pra ver se o viramundo não tinha adormecido num repentê, mas não - de olhos bem abertos continuava fitando os pés, mas num modó Desligário. Voltara todo pro funduréu intransponível dos seus Pensares, lasso, absorto. Cânho. E de tal profundú nada mais subiria, de modo que meu amigo, depois de levantar e reencapar  a viola, recomeçou lentamente seu procissório, rumo à treze de maio.
Voltou-se pra olhar   várias vezes: a ver  se no duró das braguetas não tinha  sido mesmo cambôncia malungúria exu o que acabara de ver, naquele enxó-madrugada,  murundó dela  avenida Chile. 

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